UM DIREITO DE SANGUE, UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA
Por Rodrigo Maricato Lopes — advogado ítalo-luso-brasileiro, fundador da DNA Cidadania.
Na juventude, como tantos descendentes de italianos, ouvi que não tinha direito à cidadania italiana porque minha linhagem era materna. Parecia injusto — e era. A lei negava o sangue, a história, a verdade das famílias. Mas eu lutei. Estudei. Enfrentei. E em 2016, o Tribunal Ordinário de Roma, na sentença nº 9692/2016, reconheceu judicialmente minha cidadania italiana por via materna pré-1948 — estendendo esse reconhecimento a meu pai, meus filhos e meu irmão.
Hoje, sou prova viva de que as leis existem para fazer justiça — e não para negá-la. Mesmo que num primeiro momento possa vir inconstitucional. Prova de que quem luta com visão, coragem e competência transforma o impossível em legado.
O que antes era exclusão, tornou-se cidadania.
E a luta continua — por mim, pelos meus e pelos milhares que ainda aguardam justiça.

INTRODUÇÃO
A cidadania italiana não é um privilégio. É um direito natural, enraizado na história de famílias que cruzaram oceanos em busca de dignidade. A Itália pode ter mudado suas fronteiras, suas constituições e seus governos — mas o sangue, esse nunca muda.
O reconhecimento da cidadania iure sanguinis é mais que um ato administrativo: é a afirmação jurídica da identidade de milhões de descendentes de italianos no mundo. Este artigo oferece um panorama completo, desde a unificação da Itália em 1861 até os julgamentos mais recentes que devolveram a dignidade a filhos de mulheres italianas nascidos antes de 1948.
É um reconhecimento jurídico-declaratório que pode ocorrer tanto na esfera administrativa quanto na judicial — mas a história nos mostra que, nem sempre, a via administrativa cumpriu o papel de aplicar a lei com justiça.
Um exemplo disso é a lacuna entre 1975 e 1983, quando, mesmo após a reforma do Direito de Família reconhecer a igualdade entre homens e mulheres, a cidadania continuou sendo negada aos filhos de mulheres italianas nascidos antes de 1948. A administração italiana optou por aplicar esse direito apenas a partir da Constituição de 1948, ignorando que a reforma de 1975 já conferia base legal para corrigir a exclusão anterior.
Foi somente pela via judicial, décadas depois, que a justiça começou, de fato, a ser feita.
A UNIFICAÇÃO DA ITÁLIA E OS PRIMEIROS PASSOS DA CIDADANIA (1861–1912)
A Itália tornou-se um Estado unificado em 17 de março de 1861, com a proclamação do Reino da Itália sob a liderança de Vítor Emanuel II. Essa unificação foi política e militar, mas não jurídica.
Em 1865, foi promulgado o primeiro Código Civil italiano, o Codice Civile del Regno d’Italia, com fortes influências do Código Napoleônico. Ele previa que:
- A cidadania era transmitida exclusivamente pelo pai (princípio patriarcal);
- A mulher casada perdia sua cidadania ao assumir a do marido;
- O vínculo de sangue era reconhecido apenas pela linha paterna.
Essa base jurídica inaugurou um longo período de exclusão das mulheres e de seus descendentes no exercício da nacionalidade italiana.

A GRANDE IMIGRAÇÃO ITALIANA AO BRASIL (1875–1920)
Entre 1875 e 1920, cerca de 4 milhões de italianos chegaram ao Brasil. Vieram fugindo da fome, das guerras, da pobreza e da superpopulação nas regiões do Vêneto, Calábria, Lombardia, Campânia e Sicília. A promessa era de terra e trabalho. Encontraram lavouras de café, dívidas impagáveis e vigilância — mas também deixaram uma marca que moldou o Brasil moderno.
Foram empurrados pela fome, mas movidos pela esperança — atravessaram oceanos guiados pela promessa de terra, trabalho e dignidade, incentivados pelo próprio Estado italiano a reconstruírem suas vidas no Brasil. Mas ninguém avisou que, mais de um século, o mesmo Estado tentaria apagar o direito de seus descendentes de ainda serem italianos.

Em São Paulo, a imigração italiana transformou bairros inteiros:
- Mooca, Brás e Bixiga se tornaram redutos italianos autênticos, onde se ouvia dialeto nas ruas, se cozinhava polenta nas calçadas e se mantinham vivas as tradições trazidas da Itália.
- O Círculo Italiano de São Paulo e as festas de San Gennaro e Nossa Senhora Achiropita testemunham a resistência cultural e a força das raízes.
- Os italianos fundaram escolas, clubes operários, fábricas, padarias e associações de ajuda mútua — foram essenciais na industrialização da cidade.
Sobrenome Maricato
O sobrenome Maricato possui raízes tanto italianas quanto portuguesas.
- Origem Italiana: Há indícios de que o nome derive de “Mariacatto”, com origem na região de Gênova, Itália, por volta do século XIV. Após esse período, o sobrenome “Mariacatto” deixou de ser encontrado em Gênova, embora variações como “catto” continuem a existir.
- Presença em Portugal: O sobrenome estabeleceu-se em Portugal, especialmente em regiões como Figueira da Foz, Cantanhede, Sesimbra e Setúbal. Registros indicam famílias Maricato nessas localidades desde o século XIX. Meu trisavô João Maricato nasceu em Cadima, Cantanhede, Coimbra.
- Migração para o Brasil: Membros da família Maricato migraram para o Brasil, fixando-se em estados como Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná. Há relatos de que alguns Maricato foram fundadores da cidade de Quatá, em São Paulo, por volta de 1880.
Dada essa trajetória, é plausível que a família Maricato tenha origens italianas, com posterior estabelecimento em Portugal e subsequente migração para o Brasil.
Sobrenome Di Tullio
O sobrenome Di Tullio é de origem italiana, derivando do nome latino “Tullius”, que significa “pertencente a Tullius”. O prefixo “Di” indica “de” ou “do”, sugerindo “filho de Tullius”.
- Distribuição na Itália: O sobrenome é mais prevalente na Itália, com concentrações significativas nas regiões de Abruzzo, especialmente nas províncias de Chieti e Pescara. Isso corrobora com a informação de que seu bisavô, Giovanni Di Tullio, veio da região de Abruzzo, em Montazolli.
- Migração para o Brasil: Há registros de indivíduos com o sobrenome Di Tullio que migraram para o Brasil, estabelecendo-se em diversas regiões do país., especialmente em Campinas, São Paulo.
A origem do sobrenome Di Tullio está profundamente enraizada na tradição patronímica italiana, indicando descendência de um ancestral chamado Tullius.
Também no Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Santa Catarina, comunidades inteiras foram erguidas por imigrantes italianos, com igrejas de pedra, vinhedos e sobrenomes que resistem até hoje.
A imigração italiana não foi só um movimento demográfico. Foi um ato de fé e reconstrução. Os que vieram trouxeram o idioma, a fé católica, o senso de família e o trabalho duro. O que deixaram foi uma herança de pertencimento que a Itália ainda precisa reconhecer plenamente.
Esses imigrantes deixaram heranças culturais, religiosas, linguísticas e econômicas, mas não sabiam que seus netos e bisnetos teriam que lutar para serem reconhecidos como italianos.
Filho de Italiano, Italiano É — Desde 1865
Desde 1865, o Codice Civile del Regno d’Italia (Código Civil do Reino da Itália), promulgado em 25 de junho daquele ano, já estabelecia a transmissão da cidadania italiana por sangue (iure sanguinis). É esse o marco jurídico inicial do conceito de que o filho de cidadão italiano já nasce italiano.
Aqui está a citação legal essencial do Código Civil de 1865, artigo 1º da parte sobre nacionalidade:
Art. 1º – È cittadino del Regno il figlio di padre cittadino, qualunque sia il luogo della nascita.
Tradução:
É cidadão do Reino o filho de pai cidadão, qualquer que seja o lugar do nascimento.
Interpretação jurídica:
- O artigo institui formalmente o princípio do ius sanguinis (direito de sangue) como critério para aquisição da cidadania italiana.
- A cidadania não depende de registro, residência ou ato administrativo. Ela decorre diretamente do nascimento, desde que o pai (ou mais tarde, a mãe, conforme evolução legal) seja cidadão italiano.
- Portanto, o filho de italiano é italiano desde o nascimento, como fato jurídico originário, mesmo que isso não tenha sido formalizado por documentação à época.
O trecho do Código Civil de 1865, Art. 1º, estabelece o princípio da nacionalidade jus sanguinis (direito do sangue), onde a nacionalidade é determinada pela filiação e não pelo local de nascimento. Em outras palavras, o filho de um cidadão do Reino é também cidadão, independentemente de onde tenha nascido.
A citação legal, “Art. 1º – È cittadino del Regno il figlio di padre cittadino, qualunque sia il luogo della nascita.”, significa que o filho de um pai cidadão do Reino é automaticamente cidadão, não importando o lugar onde tenha nascido. Esta é uma forma de jus sanguinis (direito do sangue), onde a nacionalidade é determinada pela origem dos pais e não pelo local de nascimento.
Codice civile del 1865
Primeiro código do Estado Italiano, emitido após a unificação política e administrativa dos estados italianos individuais. Foi promulgada por decreto em 25 de junho de 1865 e entrou em vigor em 1º de janeiro de 1866.
O Código Civil de 1865 foi um marco importante na consolidação do estado-nação italiano, estabelecendo um sistema jurídico uniforme e moderno. A disposição sobre a nacionalidade, em particular, era fundamental para definir quem eram os cidadãos do novo reino, estabelecendo critérios claros para a aquisição e perda da nacionalidade.
Título I – Della cittadinanza e del godimento dei diritti civili. Título I – Da cidadania e do gozo dos direitos civis.





📘 Codice Civile del Regno d’Italia – 1865
Libro Primo – Delle Persone
Titolo I – Della cittadinanza e del godimento dei diritti civili
Articolo 1
Ogni cittadino gode dei diritti civili, purché non ne sia decaduto per condanna penale.
Todo cidadão goza dos direitos civis, desde que não os tenha perdido por condenação penal.Articolo 2
I comuni, le provincie, gli istituti pubblici civili od ecclesiastici, ed in generale tutti i corpi morali legalmente riconosciuti, sono considerati come persone, e godono dei diritti civili secondo le leggi e gli usi osservati come diritto pubblico.
Os municípios, as províncias, as instituições públicas civis ou eclesiásticas e, em geral, todos os corpos morais legalmente reconhecidos são considerados como pessoas e gozam dos direitos civis conforme as leis e os usos reconhecidos como direito público.Articolo 3
Lo straniero è ammesso a godere dei diritti civili attribuiti ai cittadini.
O estrangeiro é admitido a gozar dos direitos civis atribuídos aos cidadãos.Articolo 4
È cittadino il figlio di padre cittadino.
É cidadão o filho de pai cidadão.Articolo 5
Se il padre ha perduto la cittadinanza prima del nascimento del figlio, questi è reputato cittadino, ove sia nato nel regno e vi abbia la sua residenza.
Se o pai tiver perdido a cidadania antes do nascimento do filho, este é considerado cidadão, desde que tenha nascido no Reino e nele tenha sua residência.Articolo 6
Il figlio nato in paese estero da padre che ha perduto la cittadinanza prima del suo nascimento, è reputato straniero.
O filho nascido no exterior de pai que tenha perdido a cidadania antes de seu nascimento é considerado estrangeiro.Egli può tuttavia eleggere la qualità di cittadino, purché ne faccia la dichiarazione a norma dell’articolo precedente e fissi nel regno il suo domicilio entro l’anno dalla fatta dichiarazione.
Ele pode, no entanto, optar pela condição de cidadão, desde que faça a declaração conforme o artigo anterior e fixe seu domicílio no Reino dentro de um ano após essa declaração.Però, se egli ha accettato un impiego pubblico nel regno, oppure ha servito o serve nell’armata nazionale di terra o di mare, od ha altrimenti soddisfatto la leva militare senza invocare esenzione per la qualità di straniero, sarà senz’altro reputato cittadino.
Contudo, se ele tiver aceitado um cargo público no Reino, ou servido nas forças armadas terrestres ou navais, ou cumprido o serviço militar sem alegar isenção por ser estrangeiro, será considerado cidadão de pleno direito.Articolo 7
Quando il padre sia ignoto, è cittadino il figlio nato da madre cittadina.
Quando o pai for desconhecido, é cidadão o filho nascido de mãe cidadã.Ove la madre abbia perduto la cittadinanza prima del nascimento del figlio, si applicano a questo le disposizioni dei due articoli precedenti.
Se a mãe tiver perdido a cidadania antes do nascimento do filho, aplicam-se as disposições dos dois artigos anteriores.Se neppure la madre è conosciuta, è cittadino il figlio nato nel regno.
Se nem mesmo a mãe for conhecida, é cidadão o filho nascido no Reino.Articolo 8
È reputato cittadino il figlio nato nel regno da straniero che vi abbia fissato il suo domicilio da dieci anni non interrotti: la residenza per causa di commercio non basta a determinare il domicilio.
É considerado cidadão o filho nascido no Reino de estrangeiro que tenha fixado domicílio contínuo de dez anos: a residência por razões comerciais não é suficiente para caracterizar domicílio.Egli può tuttavia eleggere la qualità di straniero, purché ne faccia dichiarazione nel tempo e modo stabilito dall’articolo 5.
Contudo, pode optar pela condição de estrangeiro, desde que faça a declaração no tempo e modo previstos no artigo 5.Ove lo straniero non abbia fissato da dieci anni il suo domicilio nel regno, il figlio è reputato straniero, ma gli sono applicabili le disposizioni dei due capoversi dell’articolo 6.
Se o estrangeiro não tiver fixado domicílio por dez anos no Reino, o filho é considerado estrangeiro, mas aplicam-se as disposições dos dois parágrafos do artigo 6.Articolo 9
La donna straniera che si marita a un cittadino, acquista la cittadinanza e la conserva anche vedova.
A mulher estrangeira que se casa com um cidadão adquire a cidadania e a conserva mesmo após tornar-se viúva.Articolo 10
La cittadinanza si acquista dallo straniero anche colla naturalità concessa per legge o per decreto reale.
A cidadania também pode ser adquirida pelo estrangeiro por naturalização concedida por lei ou por decreto real.Il decreto reale non produrrà effetto se non sarà registrato dall’uffiziale dello stato civile del luogo dove lo straniero intende fissare od ha fissato il suo domicilio, e se non sarà da lui prestato giuramento davanti lo stesso uffiziale di essere fedele al re e di osservare lo statuto e le leggi del regno.
O decreto real não terá efeito se não for registrado pelo oficial do estado civil do local onde o estrangeiro pretende ou já tenha fixado seu domicílio, e se não prestar juramento perante o mesmo oficial de ser fiel ao rei e obedecer ao estatuto e às leis do Reino.La registrazione deve essere fatta sotto pena di decadenza entro sei mesi dalla data del decreto.
O registro deve ser feito sob pena de caducidade, dentro de seis meses a partir da data do decreto.La moglie e i figli minori dello straniero che ha ottenuto la cittadinanza, divengono cittadini, sempreché abbiano anch’essi fissato la residenza nel regno; ma i figli possono scegliere la qualità di straniero, facendone dichiarazione a norma dell’articolo 5.
A esposa e os filhos menores do estrangeiro que adquiriu a cidadania tornam-se cidadãos, desde que também tenham fixado residência no Reino; mas os filhos podem optar pela condição de estrangeiros, mediante declaração nos termos do artigo 5.Articolo 11
La cittadinanza si perde:
1.º Da colui che vi rinunzia con dichiarazione davanti l’uffiziale dello stato civile del proprio domicilio, e trasferisce in paese estero la sua residenza;
2.º Da colui che abbia ottenuto la cittadinanza in paese estero;
3.º Da colui che, senza permissione del governo, abbia accettato impiego da un governo estero, o sia entrato al servizio militare di potenza estera.
A cidadania perde-se:
1.º Por aquele que a renuncia por declaração perante o oficial do estado civil de seu domicílio e transfere sua residência para o exterior;
2.º Por aquele que adquira cidadania em país estrangeiro;
3.º Por aquele que, sem permissão do governo, aceite emprego de governo estrangeiro ou ingresse no serviço militar de potência estrangeira.La moglie ed i figli minori di colui che ha perduto la cittadinanza, divengono stranieri, salvo che abbiano continuato a tenere la loro residenza nel regno.
A esposa e os filhos menores daquele que perdeu a cidadania tornam-se estrangeiros, salvo se mantiveram residência no Reino.Nondimeno possono riacquistare la cittadinanza nei casi e modi espressi nel capoverso dell’articolo 14, quanto alla moglie, e nei due capoversi dell’articolo 6, quanto ai figli.
No entanto, podem readquirir a cidadania nos casos e formas expressos no parágrafo do artigo 14 (quanto à esposa) e nos dois parágrafos do artigo 6 (quanto aos filhos).📜 Legge 13 giugno 1912, n.555 sulla cittadinanza italiana
Lei de 13 de junho de 1912, nº 555 sobre a cidadania italiana
Art. 1 – É cidadão por nascimento:
- o filho de pai cidadão;
- o filho de mãe cidadã, se o pai for desconhecido ou não tiver a cidadania italiana, nem a de outro Estado, ou se o filho não seguir a cidadania do pai estrangeiro, conforme a lei do Estado a que este pertence;
- aquele que nasce no Reino [da Itália] se ambos os pais forem desconhecidos ou não tiverem cidadania italiana, nem a de outro Estado, ou se o filho não seguir a cidadania dos pais estrangeiros, segundo a lei do Estado ao qual pertencem.
🗒️ Nota interpretativa: este artigo reafirma o princípio do ius sanguinis exclusivamente pela linha paterna, e só admite a via materna em caso de pai desconhecido ou apátrida. Uma mulher italiana *não podia transmitir a cidadania aos filhos se houvesse pai estrangeiro identificado — o que gerou exclusão estrutural e desigualdade de gênero.
“O filho de pais desconhecidos encontrado na Itália presume-se, até prova em contrário, nascido no Reino.”
Art. 2 –
O reconhecimento ou a declaração judicial da filiação durante a menoridade do filho (não emancipado) determina a cidadania conforme as normas desta lei.
“Tem prevalência a cidadania do pai, ainda que a paternidade tenha sido reconhecida ou declarada após a maternidade.”
Se o filho for reconhecido ou declarado quando já maior de idade ou emancipado, conservará o próprio estado de cidadania, mas poderá — no prazo de um ano após o reconhecimento ou sentença — optar pela cidadania conforme essa filiação.
As disposições deste artigo também se aplicam a filhos cuja paternidade ou maternidade constem nos termos do art. 279 do Código Civil.
A LEI Nº 555 DE 1912: UM MARCO LEGAL, UMA INJUSTIÇA HISTÓRICA
Promulgada em 13 de junho de 1912, a Lei nº 555 foi o primeiro grande estatuto italiano voltado exclusivamente à definição da cidadania nacional após a unificação do país. Consolidando o princípio do ius sanguinis (direito de sangue), ela representou um avanço em termos de estruturação legal, mas também uma grave inflexão excludente no plano dos direitos civis — especialmente para as mulheres e seus descendentes.
O que dizia a Lei nº 555/1912?
- A cidadania italiana era transmitida exclusivamente pela linha paterna (art. 1.º);
- A mulher italiana que se casasse com um estrangeiro perdia automaticamente a cidadania italiana e adquiria a nacionalidade do marido (art. 10.º);
- Os filhos nascidos dessas uniões não eram considerados cidadãos italianos, mesmo que o avô ou a mãe fossem italianos de nascimento.
O que isso significa?
Essa legislação não apenas restringia a cidadania a um modelo patriarcal, mas institucionalizava a invisibilização jurídica da mulher italiana, impedindo que ela transmitisse a própria nacionalidade aos seus filhos. O nascimento de uma criança, no seio de uma família com mãe italiana e pai estrangeiro, não gerava qualquer vínculo legal com a Itália, salvo em situações de exceção — como no caso de pai desconhecido.
A injustiça se agrava ao notar que essa norma:
- Foi aplicada por mais de seis décadas, atingindo milhões de descendentes de italianos em todo o mundo;
- Foi mantida mesmo após a entrada em vigor da Constituição Republicana de 1948, que proclamava a igualdade entre homens e mulheres (art. 3.º);
- Tornou-se uma das principais causas de exclusão dos descendentes de italianos que buscavam o reconhecimento de sua cidadania.
Uma injustiça intergeracional
A Lei nº 555/1912 criou um abismo jurídico entre os descendentes de italianos por via paterna e por via materna. Esse abismo não era apenas técnico ou administrativo: era uma negação profunda de pertencimento, de identidade, de herança moral e familiar. Foram necessárias décadas de luta judicial e mobilização internacional para que esse erro começasse a ser corrigido — e mesmo assim, apenas parcialmente.
A verdadeira reinterpretação desse dispositivo só começou a partir dos anos 2000, com decisões corajosas do Tribunal Ordinário de Roma, que passaram a reconhecer a cidadania iure sanguinis também por via materna pré-1948, à luz da Constituição de 1948.
📜 COSTITUZIONE DELLA REPUBBLICA ITALIANA
(Promulgada em 1º de janeiro de 1948)
Principi Fondamentali – Princípios Fundamentais
Articolo 1
Testo originale:
L’Italia è una Repubblica democratica, fondata sul lavoro.
La sovranità appartiene al popolo, che la esercita nelle forme e nei limiti della Costituzione.
Tradução oficial:
A Itália é uma República democrática, fundada no trabalho.
A soberania pertence ao povo, que a exerce nas formas e nos limites da Constituição.
Articolo 2
Testo originale:
La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell’uomo, sia come singolo sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l’adempimento dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale.
Tradução oficial:
A República reconhece e garante os direitos invioláveis do ser humano, tanto como indivíduo quanto nas formações sociais em que se realiza a sua personalidade, e exige o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social.
Articolo 3
Testo originale:
Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali.
È compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e l’eguaglianza dei cittadini, impediscono il pieno sviluppo della persona umana e l’effettiva partecipazione di tutti i lavoratori all’organizzazione politica, economica e sociale del Paese.
Tradução oficial:
Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, idioma, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais.
É dever da República remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País.
Articolo 4
Testo originale:
La Repubblica riconosce a tutti i cittadini il diritto al lavoro e promuove le condizioni che rendano effettivo questo diritto.
Tradução oficial:
A República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornem efetivo esse direito.
Esses quatro artigos são o fundamento ético e jurídico da cidadania igualitária, e o Art. 3 é central para as ações judiciais que contestaram a discriminação de gênero imposta pela Lei nº 555/1912.

📜 Constituição da República Italiana (1º de janeiro de 1948)
Fundamento do princípio da igualdade e da cidadania por via materna
Artigo 3º – Princípio da igualdade
Testo original (italiano):
Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali.
Tradução oficial (português):
Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, idioma, religião, opiniões políticas, condições pessoais ou sociais.
📌 Esse é o artigo-chave usado nas ações judiciais que reconhecem a cidadania por via materna antes de 1948. Ele revoga implicitamente qualquer norma anterior que discriminasse com base em gênero — como a Lei nº 555/1912.
Artigo 29 – Igualdade entre os cônjuges
Testo originale:
Il matrimonio è ordinato sull’eguaglianza morale e giuridica dei coniugi.
Tradução:
O casamento é baseado na igualdade moral e jurídica dos cônjuges.
📌 Este artigo reforça que a mulher italiana tem os mesmos direitos civis e jurídicos do homem, inclusive quanto à transmissão da cidadania aos filhos — tese reconhecida posteriormente pelo Tribunal de Roma e por várias cortes civis italianas.
Artigo 136 – Eficácia das sentenças da Corte Constitucional
Quando a Corte Constitucional declara a ilegitimidade de uma lei, esta deixa de ter efeito a partir do dia seguinte à publicação da sentença.
📌 Base usada para sustentar que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade atingem inclusive os casos anteriores, especialmente no reconhecimento de cidadania iure sanguinis por linha materna.
Esses dispositivos constitucionais fundamentam juridicamente:
O direito originário e declaratório da cidadania, como demonstrado em sua própria sentença judicial nº 9692/2016.
A reinterpretação da Lei nº 555/1912 à luz da Constituição;
A possibilidade de ações judiciais por via materna pré-1948;
A CONSTITUIÇÃO DE 1948: UM NOVO PRINCÍPIO, MESMA PRÁTICA
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do regime fascista, a Itália tornou-se oficialmente uma república em 1946. A Constituição de 1º de janeiro de 1948 marcou um novo ciclo, estabelecendo no artigo 3º a igualdade entre homens e mulheres.
Mas, na prática, o Ministério do Interior e os consulados continuaram a aplicar a Lei nº 555/1912, ignorando os novos princípios constitucionais. Assim, filhos e filhas de mulheres italianas nascidos antes de 1948 continuaram excluídos da cidadania até 1983.
A MUDANÇA LEGISLATIVA: 1975, 1983, 1992
- 1975: A reforma do Direito de Família italiano reconheceu, no plano civil, a igualdade entre os pais, incluindo no exercício da autoridade sobre os filhos.
- 1983: Foi autorizada, pela via administrativa, a transmissão da cidadania italiana por mulheres — mas somente para filhos nascidos após 01/01/1948.
- 1992: Com a Lei nº 91, a Itália passou a permitir a dupla cidadania sem necessidade de renúncia. Essa lei manteve o ius sanguinis como base, mas não corrigiu o problema das mulheres nascidas antes de 1948.
A JURISPRUDÊNCIA E O NASCIMENTO DAS AÇÕES JUDICIAIS (2009–PRESENTE)
Em 2009, começaram a surgir as primeiras decisões do Tribunal de Roma reconhecendo o direito de cidadania a descendentes de mulheres italianas nascidos antes de 1948, com base no argumento de que:
“A aplicação da Lei de 1912 deve ser interpretada à luz da Constituição de 1948. Caso contrário, perpetua-se uma discriminação inconstitucional de gênero.“
Foi exatamente esse o fundamento utilizado pelo Tribunal Ordinário de Roma na sentença nº 9692/2016, que reconheceu a minha cidadania italiana via materna, além da cidadania de meu pai, meu irmão e meus filhos.
Essa sentença foi um divisor de águas. Ela reconheceu que:
- A cidadania é originária e declaratória;
- A linha materna deve ter os mesmos direitos que a linha paterna;
- O direito sempre existiu, apenas foi negado por um Estado que se omitiu.
MINHA SENTENÇA ITALIANA DO TRIBUNAL DE ROMA – 2016
📜 Sentença nº 9692/2016 – Tribunal de Roma
Reconhecimento da cidadania italiana por via materna pré-1948
Processo: nº 9692/2016
Juízo: Tribunal Ordinário de Roma – Seção Civil
Publicação: 13 de maio de 2016
Requerente: Rodrigo Maricato Lopes e família
Trecho original (em italiano) | Tradução oficial (em português) |
---|---|
“I ricorrenti sono nati da madre italiana e da padre straniero prima dell’entrata in vigore della Costituzione Repubblicana del 1948, che ha stabilito il principio di uguaglianza tra i sessi (art. 3 e art. 29 Cost.), con la conseguente abrogazione implicita delle norme discriminatorie contenute nella legge n. 555/1912.” | “Os requerentes nasceram de mãe italiana e pai estrangeiro antes da entrada em vigor da Constituição Republicana de 1948, a qual estabeleceu o princípio da igualdade entre os sexos (artigos 3º e 29), com a consequente revogação implícita das normas discriminatórias contidas na Lei nº 555/1912.” |
“La cittadinanza italiana si acquista iure sanguinis, e non per concessione dell’autorità amministrativa o giudiziaria. Il ruolo del giudice è meramente dichiarativo.” | “A cidadania italiana é adquirida por direito de sangue, e não por concessão da autoridade administrativa ou judicial. O papel do juiz é meramente declaratório.” |
“Le norme della legge 555/1912 che impedivano il passaggio della cittadinanza dalla madre ai figli sono da ritenersi in contrasto con i principi costituzionali e, pertanto, non più applicabili.” | “As normas da Lei 555/1912 que impediam a transmissão da cidadania pela mãe aos filhos devem ser consideradas em conflito com os princípios constitucionais e, portanto, inaplicáveis.” |
“Il riconoscimento della cittadinanza alla madre comporta il riconoscimento anche in favore dei figli e dei discendenti, senza interruzione della trasmissione iure sanguinis.” | “O reconhecimento da cidadania à mãe implica o reconhecimento também aos filhos e descendentes, sem interrupção na transmissão pelo direito de sangue.” |
Comentário:
Essa sentença não é apenas um documento jurídico — ela é a comprovação viva de que o direito de sangue supera o tempo, a burocracia e o preconceito. Ela prova que a Constituição de 1948 revogou silenciosamente a injustiça da Lei nº 555/1912, e que os descendentes de mulheres italianas nunca deixaram de ser italianos — apenas foram ignorados pelo Estado.
Quando o Judiciário Corrige a História: O Que a Sentença Diz em Cada Parte
1. O rompimento com a injustiça da Lei nº 555/1912
O Tribunal de Roma reconheceu que a Constituição Republicana de 1948, ao estabelecer o princípio da igualdade entre homens e mulheres, tornou automaticamente inconstitucional a norma anterior que impedia as mulheres italianas de transmitir a cidadania a seus filhos. Essa decisão rompe com mais de seis décadas de omissão estatal, declarando que o direito existia desde o nascimento — o que faltava era o reconhecimento.
2. A cidadania italiana não é concedida — é declarada
O juiz afirma que a cidadania italiana iure sanguinis não depende de concessão administrativa ou judicial. Ela é originária e automática para os descendentes de italianos. O papel do juiz é apenas declarar um fato jurídico que já existe. Isso desmonta a ideia de que se está “pedindo” cidadania: o que se busca é apenas o reconhecimento de um direito que nunca deixou de existir.
3. A revogação implícita da desigualdade
Ao afirmar que as normas da Lei nº 555/1912 estão em conflito com a Constituição, a sentença declara que elas não podem mais ser aplicadas. Isso equivale a uma revogação implícita por inconstitucionalidade material, reconhecendo que nenhuma lei pode continuar produzindo efeitos se ofende os princípios fundamentais da Constituição — especialmente o da igualdade de gênero.
4. A linha materna é legítima, contínua e transmissível
Por fim, o juiz conclui que, ao reconhecer a cidadania da mãe, reconhece-se automaticamente o direito dos filhos e dos demais descendentes, sem quebra na linha de transmissão. Ou seja: não há interrupção na cadeia genealógica pelo simples fato de a mulher ter sido ignorada pelo Estado. A cidadania transmitida por via materna antes de 1948 é legítima, contínua e eficaz — desde sempre.
🟥 O DECRETO-LEI Nº 36/2025: UMA NOVA BATALHA
Quando o Estado tenta negar o sangue
Em 2025, o governo italiano publicou o Decreto-Lei nº 36, suspendendo os trâmites administrativos da cidadania iure sanguinis — inclusive para menores de idade. A partir de então, somente a via judicial permanece como caminho legítimo para o reconhecimento do direito de origem.
Esse decreto não nasce do direito. Ele nasce do medo administrativo, da lógica de contenção, da negação burocrática da história. É uma barreira estatal contra a verdade, que ignora os fundamentos constitucionais, despreza a jurisprudência consolidada nos tribunais e atenta contra a memória dos imigrantes italianos que foram enviados, muitas vezes oficialmente, ao Brasil, à Argentina, aos Estados Unidos e a tantas outras nações.
Se houve apoio estatal para que nossos bisavós cruzassem o Atlântico com uma carta de chamada na mão, como pode haver hoje um Estado que se recusa a reconhecê-los como parte da própria Itália?
Não é só um decreto. É uma agressão contra o sangue, contra o pertencimento, contra a dignidade das famílias italianas no mundo.
🟩 UM MOVIMENTO MUNDIAL: O SANGUE NÃO SE CALA
A resposta veio — e não veio de gabinetes. Veio das ruas, das redes, das famílias.
Hoje, descendentes de italianos se manifestam em São Paulo, Roma, Buenos Aires, Nova York, Londres, Zurique, Toronto. Os protestos se multiplicam, os vídeos viralizam, as ações judiciais se fortalecem. O mundo itálico desperta.
Não se trata apenas de um direito individual. Trata-se de um movimento civilizacional — uma geração de netos e bisnetos que não aceita mais ser ignorada por uma estrutura que tenta apagar a contribuição dos seus antepassados.
A corrente é majoritária. A jurisprudência é sólida. O direito está do nosso lado.
🟨 CONCLUSÃO: O SANGUE FALA MAIS ALTO
A cidadania italiana não é uma cortesia do Estado.
Ela não é um privilégio, nem um favor, nem uma concessão.
Ela é um fato jurídico, reconhecido desde 1865, quando o Reino da Itália declarou que o filho de italiano é italiano — onde quer que nasça.
É isso que defendemos.
Porque ninguém pode tirar o que nasceu com você.
Minha missão como advogado ítalo-descendente é lutar ao lado das famílias que se recusam a aceitar o apagamento. Que não se intimidam diante de decretos injustos. Que compreendem que o que herdaram não foi apenas um sobrenome — mas um chamado à continuidade histórica.
Com visão, coragem e competência, seguimos em frente.
Porque nosso maior patrimônio não é um passaporte: é o sangue que pulsa por justiça.